Carvalho e Silva Advogados

É fundamental repensar política econômica que se vale de tributos

Gostaríamos de retomar o tema do nosso último texto nesta coluna, quando tratamos de aspectos relacionados à certeza, transparência, simplicidade e modicidade na relação tributária, que, conforme então mencionado, costumam ser unidos em torno da expressão praticabilidade em matéria tributária.

Apenas para prosseguir o argumento, relembremos que a praticabilidade na seara tributária está ligada (i) à eficiência, eficácia, celeridade e economicidade na implementação e arrecadação dos tributos e (ii) a tornar o ordenamento exequível e aplicável, sobretudo por meio de técnicas de tributação e arrecadação que envolvem, muitas vezes, ficções, presunções, bases presumidas e simplificação de cálculos.

Por fim, daremos sequência aos nossos argumentos a partir de algumas questões que foram apenas apontadas no texto anterior e que aqui repetimos.

Apesar de poucos tributos terem uma sistemática de apuração complexa e de poucos contribuintes estarem submetidos a esses tipos de regimes (lucro real, PIS e Cofins não cumulativo, ICMS etc), perguntamos:

  1. O montante arrecadado nessa sistemática complexa não motiva uma releitura da eficiência e da praticabilidade na apuração?
  2. Os gastos com fiscalização, arrecadação e os custos de conformidade desses grandes contribuintes não mobilizam enormes e vultuosos recursos?
  3. Esses valores não contrariam fortemente a ideia de modicidade de recursos entre a apuração e o repasse ao governo?
  4. Esses custos concentrados nas despesas de poucos contribuintes não acabam sendo repassados nos preços de todos os consumidores, tornando o sistema desnecessariamente ineficiente e, em um círculo vicioso, devolvendo à população brasileira (que em sua maioria apura de forma simples e tem baixa renda) os custos dessa complexidade?
  5. De forma mais direta, se há elevado custo de apuração por parte das empresas e de fiscalização por parte do governo, esses valores não são duplamente repassados para a sociedade como um todo, seja, respectivamente, pela introdução desses gastos nos preços dos produtos consumidos por todos, seja pelo valor elevado do gasto público direto do serviço de fiscalização?

Pessoalmente, consideramos todas as respostas às questões acima formuladas como afirmativas.

Por isso, repensar o sistema de leis vigentes em matéria tributária e as políticas econômicas que se valem de tributos é fundamental, seja em um sentido econômico, seja em um jurídico-tributário, fiscal e até mesmo moral (justiça tributária)[1].

Muitas são as situações em que a eficiência, eficácia, celeridade e economicidade na implementação e arrecadação dos tributos passaram longe de ser algo a ser perseguido na criação ou reforma destes tributos.

A transição e o posterior desenvolvimento da sistemática não-cumulativa de apuração das contribuições sociais ao PIS e da Cofins demonstram bem isso (e nos concentraremos nelas, por questão de delimitação, apenas).

Em um primeiro momento, tínhamos duas contribuições com alíquotas não tão elevadas (0,65% sobre o faturamento das empresas comerciais e 5% do IR para as prestadoras de serviço, e algo entre 0,5 a 2% sobre o faturamento, se levarmos em conta o antigo Finsocial, deixando de lado alguns detalhes, que não vêm ao caso).

Pois bem, em se tratando da atual Constituição Federal, essas duas contribuições são consideradas contribuições sociais, isto é, devem financiar políticas sociais da União Federal, nos termos dos artigos 149, 195 e 239. Em outro dizer, são fonte de custeio para gastos do governo na área da seguridade social (saúde, previdência e assistência social e, no caso do PIS, mais especificamente, na área de integração social, conforme prescrito nos parágrafos do artigo 239).

A lógica de sua criação está atrelada às tarefas de um Estado Democrático de Direito, tal como promulgado na Carta de 1988, com todas as suas virtudes e dificuldades; e, ainda, possuem características um pouco distintas das dos impostos (que financiam as despesas gerais dos governos) ou das taxas (que remuneram um serviço público específico e divisível ou exercício de poder de polícia).

A razão de ser deste tipo de tributo é a decisão pelo dever de atuação (do Estado) em objetivos sociais consagrados neste modelo constitucional de Estado e a necessidade de custear essa intervenção. Como a opção do texto constitucional não foi apenas pelo desenvolvimento econômico como mero crescimento do produto bruto, e sim pelo desenvolvimento econômico, social e cultural (arts. 3º, 170, 218 e 219 da Constituição de 1988), a busca por políticas de redistribuição (redução das desigualdades sociais), especificamente na área da previdência, saúde e assistência social, demandam elevado volume de recursos financeiros (daí a seguridade social ser financiada por toda a sociedade, de forma direta ou indireta — artigo 195 da CF/1988).

Assim, ao lado de contribuições previdenciárias patronais, que seguem ou deveriam seguir uma lógica atuarial (além das contribuições ao RAT, com suas alíquotas variáveis conforme o risco da atividade econômica, a aplicação das alíquotas do FAP, a contribuição adicional da aposentadoria especial), temos as outras contribuições sociais: a contribuição social sobre o lucro (verdadeiro adicional de imposto de renda transformado em contribuição) e as já mencionadas contribuições ao PIS e a Cofins.

Tributos como esses devem ter a sua carga estimada de acordo com o gasto necessário e possível para se atingir os fins sociais (redistributivos) que se pretende. As alíquotas não podem ser elevadas, pois elas já incidem sobre várias grandezas relacionadas ao capital (empresas/empregadores): (i) salários e pagamentos a pessoas físicas, (ii) receita bruta e (iii) lucro.

A necessidade, contudo, cada vez mais acentuada, de fazer frente às necessidades sociais recém impostas pelo novo regime constitucional, logo induziu os governos federais à descoberta de que as contribuições poderiam ser criadas ou majoradas com diversas vantagens (ausência de necessidade de repartição do resultado arrecadado com os demais entes da federação, maior facilidade de criação do que eventuais impostos adicionais, possibilidade de manejo para reserva em fundos sem o efetivo e correspondente gasto, de modo a se obter resultados fiscais primários, no caso de contribuições de intervenção no domínio econômico, entre outras).

O aumento paulatino de alíquotas, que de 0,5% e 0,65% passam a somar 3,65%, causam efeitos econômicos complicados, como o da bitributação nas cadeias produtivas e de comércio e de prestação de serviços e o repasse óbvio ao preço final.

E é justamente nessa hora que os “raciocínios intuitivos” de que contribuições deveriam ser não cumulativas (uma ideia interessante, em princípio) vêm trazer complexidade ao que deveria ser simples e não tão elevado.

A partir de 2003, as contribuições são transformadas em contribuições não cumulativas, com uma séria de desafios e complexidades (de compreensão, de litigiosidade absurda, de custos de conformidade elevados e de arrecadação excessivamente custosa).

Ao fim e ao cabo, a ideia de não comprometer a reincidência do mesmo tributo nas diversas etapas logo se transformou na eleição daqueles que pagariam mais (os que poucos créditos teriam para abater sobre uma alíquota agora elevada de 9,25%) e os que conseguiriam reduzir a arrecadação original (abaixo dos 3,65% habituais).

Não à toa, logo nos primeiros meses, a conta de chegada se revela sem mistérios: mais do que a não cumulatividade, o resultado foi arrecadatório[2], com a criação de categorias econômicas com distintas e variadas cargas (isso sem contar a concomitância com regimes distintos: o cumulativo e o concentrado e monofásico, por exemplo).

A progressão de anos e governos só tornou mais agudo o afastamento aos ideais de uma praticabilidade nos termos expostos no início. Logo foram criados inúmeros regimes especiais para determinadas cadeias produtivas, isenções (gastos tributários indiretos) para determinados produtos, acúmulo (ou “empoçamento”) de créditos em algumas operações; regimes de monetização[3] de créditos para alguns e até mesmo “fast track[4] para os setores que conseguiam convencer o governo de sua importância.

Em pouco tempo, encontramos setores que não só não contribuem com essas duas contribuições sociais, como, de fato, acabam por receber recursos do governo para saldar outros tributos com aquilo que não pagaram diretamente. Isso sem mencionar os subsídios cruzados que o excesso de crédito de um produto proporciona a outros do mesmo contribuinte, não contemplados pelas isenções[5].

O governo federal, assim, passa a desconsiderar a própria natureza original das contribuições, como fonte cobrada de forma generalizada dos contribuintes para a seguridade social, e passa a ver nessas contribuições verdadeiros impostos sobre o consumo (cuja competência constitucional originária é dos Estados e Municípios – ICMS e ISS, respectivamente –, sem olvidar, por certo, o IPI, este federal). Daí a lógica de indução econômica por programas de governo que manejaram essas contribuições[6].

Nem mesmo a doutrina parece ter ficado isenta desta transmutação ou prestidigitação: brotaram às centenas os estudos comparativos ente o IVA europeu e essas contribuições!

Estrago feito, após, finalmente, o avanço da informática e a adoção de notas fiscais eletrônicas, o governo federal torna-se apto a implementar uma não cumulatividade mais digna de se valer desta outrora consagrada expressão. Promete-se o crédito financeiro, ou seja, o real aproveitamento daquilo que foi pago na operação anterior (com alguns ajustes entre contribuintes de regimes alternativos e com a redução da carga em alguns setores). Ainda assim, não se eliminará, por certo, os diversos regimes especiais de setores e cadeias produtivas (o fenômeno já conhecido na doutrina da dificuldade política de revogação de isenções concedidas).

Tempo levará para que haja ambiente político e fiscal para a aprovação da prometida mudança. Certamente, a conta de chegada estará presente; no mínimo, para aumentar um pouco a já tão elevada carga hodierna. Haverá alguma redistribuição de eleitos e perdedores e muita complexidade para a adaptação dos contribuintes.

Ainda assim, essa é uma reforma que se faz necessária e que se revela urgente. Faltam, contudo, alguns passos adiante, rumo não só à praticabilidade, mas também à transparência na relação contribuinte e fisco (outra dimensão da transparência fiscal).

Divulgou-se, há poucos meses, que o projeto de lei contendo essa reforma, inicialmente apenas alcançando o PIS, para calibrar as cargas, foi encaminhado à Casa Civil[7]. Mas, além de pouco sabermos de seu andamento (pudera!), novamente um assunto tão importante e estratégico para a sociedade é anunciado na forma singela de uma apresentação em Power Point[8], sem consulta pública no site da Receita Federal, ou seja, em sentido contrário ao que ocorrera em outras searas, como no momento da elaboração do marco civil da internet ou de outras tantas regulações, e sem a apresentação do texto normativo encaminhado, para a devida crítica e amadurecimento.

Enfim, mais uma promessa de justiça fiscal e simplificação que parece estar permeada, ainda, pela complexidade e pouca transparência de seus termos. Certamente, chegaremos a uma época em que a relação entre fisco e contribuinte – entre servidores e usuários do serviço público, portanto – será menos marcada pela desconfiança e antagonismo apriorísticos. Ansiar por esse ideal, sonhar com esse momento, não parece ser um projeto despropositado ou tolo. Mas, enquanto pouco caminharmos para a praticabilidade, que pode se concretizar como modicidade e facilidade de arrecadação e apuração, certamente teremos que continuar considerando afirmativas as respostas àquelas cinco questões postas anteriormente.


[1] Estamos muito pouco preocupados, aqui, com a busca de afastamento de distorções tributárias a partir de discussões principiológicas por meio do Poder Judiciário. Nossa reflexão é sobre a necessidade de reforma tributária por parte do Poder Executivo e, após, Legislativo.
[2] 2003:http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/relatorios-do-resultado-da-arrecadacao/arrecadacao-2003.
2004: file:///C:/Users/Convidado/Downloads/An%C3%A1lise%20mensal%20-%20dezembro%202004.pdf. Não se deve esquecer, entretanto, que uma parte considerável do impacto positivo na arrecadação da nova sistemática leva em conta, também, a arrecadação sobre bens e serviços importados, mas que compõe a medida como um todo.
[3] Transformação de créditos acumulados sem possibilidade de compensação em valores a serem restituídos ou compensados com outros tributos que, normalmente, não seriam objeto de aproveitamento deste crédito.
[4] Restituição acelerada de créditos acumulados.
[5] O contribuinte que obtém excesso de crédito ao produzir e comercializar determinado produto poderá usar o crédito acumulado neste produto para reduzir a carga efetiva de outro produto de sua linha, cujo incentivo não fora objeto da política econômica de incentivo fiscal.
[6] Por isso, no texto anterior, questionei: as contribuições destinadas à seguridade social, cuja razão de apuração deveria ser o seu proporcional custeio, prestar-se-iam a exercícios de política industrial? Estas contribuições deveriam ser tratadas como se fossem verdadeiros impostos sobre o valor adicionado (ainda que submetidas a um dos regimes pontuais mais sui generis que se poderia imaginar), em que a alíquota efetiva pode variar de um valor próximo a 9,25% sobre a receita bruta (para aquela sujeitos ao regime não-cumulativo e que não possuem direito a muitos créditos) até o acúmulo de valor a receber da União?
[7] http://idg.receita.fazenda.gov.br/noticias/ascom/2015/dezembro/fazenda-conclui-reforma-que-simplifica-a-contribuicao-para-o-pis.
[8] Disponível no mesmo link acima.